quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Pets e Crianças (entrevista, Parte 1)

"Crianças que convivem com animais desde cedo compreendem melhor o conceito de respeito e amor ao próximo"

Os benefícios dessa relação

Seu filho vive insistindo para você presenteá-lo com bichos de estimação? Ou seu filho já convive com eles? Seja qual for o caso, vale saber mais sobre a relação crianças com animais. Por que essa interação é enriquecedora para o desenvolvimento infantil? Quando ele deve ou não ocorrer? Como potencializar os benefícios desse convívio? Quais os pets mais indicados para compartilhar a rotina com nossos pequenos? 


Quem responde a estas perguntas é a psicóloga e veterinária Ceres Berger Faraco, veterinária graduada pela Universidade Federal do RS e doutora em Psicologia pela PUC do RS e pela Universidade de Valência, na Espanha. Matéria realizada pela equipe da revista cães e cia (www.caes-e-cia.com.br).

Entrevista:

Modelo adequado de convivência

No site Psicologia Animal, a senhora diz que o ecologista Alan Beck e o psquiatra Aaron Katcher, ambos estudiosos da interação humano-animal, consideram “a convivência com bichos fundamental para o desenvolvimento da personalidade dos humanos, tendo influência direta no desenvolvimento infantil”. Isso equivale a dizer que crianças que crescem sem conviver com animais ficam com falhas de personalidade? 
Não podemos ser absolutistas. É claro que isso depende da vida de cada criança. Nem todas têm a oportunidade de se relacionar com animais. O que sabemos é que boas relações com animais ajudam as crianças. Os animais, quer os verdadeiros, quer os simbólicos, fazem parte do universo infantil. Os brinquedos, as histórias, a decoração do quarto, tudo na vida das crianças é repleto de imagens de bichos. Estudos mostram que eles aparecem em mais de 60% dos sonhos das crianças de até 7 anos. Na medida em que elas crescem, essa frequência diminui.

As crianças sonham tanto com animais porque o universo infantil é repleto de imagens deles ou há razões mais profundas para isso? 
 Não se conhece essa explicação. Mas podemos especular a respeito. No passado, não havia essa separação tão grande entre humanos e outros animais, e as crianças trazem muito do primitivo. É fato que elas têm facilidade muito maior de se relacionar com animais do que com pessoas adultas.

Por quê? 
Porque a comunicação delas se utiliza muito de recursos não verbais. Mesmo quando a criança usa a vocalização, não há especial preocupação com o conteúdo da fala. Isso as aproxima dos outros animais. Todos os sentidos são usados na linguagem das crianças, mas o menos utilizado é justamente a fala, que é o mais empregado pelos adultos.

Toda criança deve ter um animal? Toda criança deve ter um animal desde que as famílias tenham condição de proporcionar essa relação num modelo adequado de convivência.

Como é um modelo adequado de convivência? 
É aquele que o animal é respeitado como ser vivo com seus interesses e necessidades. Essas necessidades não se resumem em comida e água. O animal requer atenção, afeto e vários cuidados. Ele tem de estar inserido na vida familiar. 

Se o modelo de convivência estabelecido entre família e o animal não for adequado, o convívio dele com a criança não será positivo para o desenvolvimento dela? 
Se o modelo de convivência for inadequado, esse animal estará sendo negligenciado. Logo, além de obviamente negativo para ele, a família transmitirá para a criança um modelo em que negligenciar o outro é normal, é aceitável. A cultura do manejo é transmitida através das gerações. Animais só devem fazer parte da vida de famílias que gostam deles e que querem e podem mantê-los de forma adequada.

O modelo adequado de convivência, então, é aquele em que o animal é tratado como membro da família? 
Pode ser, mas o essencial é que ele seja respeitado e atendido em seus interesses e necessidades.

"Criar noções de responsabilidade na criança: o convívio com pets pode ajudar nesse processo"

Família multiespécie

O animal tratado como membro de família é o que se vê na chamada família multiespécie, que, como o termo sugere, é aquela composta não só por seres humanos mas também por bichos de estimação, correto? 
No Brasil, o termo família multiespécie foi cunhado por mim e meu orientador, na ocasião do meu mestrado. Naquele época, o conceito de família multiespécie ainda era, de certa forma, uma perspectiva. Hoje, é realidade. Essa expressão nasceu da discussão sobre a idéia tradicional de família, que envolvia, até então, apenas pessoas unidas por laços de sangue. O conceito de família multiespécie propõe uma família constituída não exclusivamente por seres com laços de sangue, mas também por seres com laços afetivos. Dessa forma, entram na definição de família não só os animais de estimação como os amigos íntimos, às vezes até mais próximos que indivíduos da família nuclear.

A família multiespécie surge da busca por animais de estimação como forma de suprir os vazios decorrentes da desagregação familiar e do isolamento social que marcam a vida moderna? 
Há várias possibilidades explicativas. Essa é uma e tem sentido. Vivemos um momento de isolamento. As relações são fluídas; os vínculos, instáveis. Tudo se esvai. É a sociedade do instantâneo e, com ela, há uma série de perdas. Nisso, os animais entrariam. Mas essa explicação pode ser usada de duas maneiras: uma positiva e outra negativa. A positiva, no sentido de que isso vem a ser uma inovação social para dar conta de uma necessidade que não vem sendo atendida na sociedade atual, na forma como hoje ela se estrutura entre os indivíduos. A negativa, no sentido de que o animal ganha importância na nossa vida por um adoecimento das pessoas e da sociedade. É uma forma preconceituosa de avaliação. Gosto de frisar isto porque muita gente encara com resistência essa nova realidade, encara a relação com o animal como decorrente da incapacidade das pessoas para se relacionar entre si. Muitos rotulam a relação humano-animal como patológica. E não é isso que eu quero dizer quando concordo que uma das explicações para a atual busca pelos animais seja suprir os vazios impostos pela vida moderna. Claro que pode haver patologia na relação Homem versus animal, mas pode haver patologia em todas as relações humanas, não só nessa. Em verdade, a necessidade social das pessoas e a carência delas não são sempre déficits nem fragilidades, são características da espécie. Os seres humanos necessitam de relações sociais, são gregários do ponto de vista evolutivo e biológico. Por que viver em sociedade tem de ser apenas entre indivíduos da mesma espécie? Por que as relações de parceria devem ocorrer apenas entre pessoas? É preconceituoso considerar que a necessidade humana de interação de se restringir à interação entre pessoas.


          Cães e gatos: os mais indicados 

Mais unidos pela evolução

Quais as outras explicações para a formação da família multiespécie? 
Outra delas vem da nova biologia, que define a relação entre espécies como fenômeno da trajetória evolutiva. Boa parte dos estudiosos defende as relações entre espécies como caracterizadas pelo compartilhamento, pela cooperação, não pela competição. O fato de hoje estarmos associados a bichos de estimação decorre da evolução, em que humanos e determinados outros animais foram convivendo para sobreviver, para enfrentar desafios do ambiente. Foram assim se constituindo em parceria. A domesticação das espécies coincide com mudanças importantes na vida das pessoas. Ela ocorre quando passamos da vida nômade para a sedentária. Mais tarde, os animais vão se aproximando ainda mais. Começam a ganhar nome e a entrar na casa das famílias. A história da humanidade ao lado de outras espécies foi e vai se transformando ao longo dos tempos. O fato de hoje os animais de estimação, sobretudo cães e gatos, estarem inseridos na família da forma como estão surge, defende a nova biologia, desses laços mais primitivos. As espécies em questão, tanto a humana quanto a canina e a felina, foram se adaptando, se modificando, em nome do convívio.



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