Os benefícios dessa relação (Parte 3)
A equipe Trilha da Matilha agradece esta ótima matéria:
Entrevista realizada pela equipe da revista Cães e CIA edição de número 405 (www.caes-e-cia.com.br) que entrevistou a psicóloga e veterinária Ceres Berger Faraco, veterinária graduada pela Universidade Federal do RS e doutora em Psicologia pela PUC do RS e pela Universidade de Valência, na Espanha.
Ciclo da vida e perdas
Li em um artigo que uma das importâncias do convívio com animais no desenvolvimento das crianças seria o de colocá-las em uma posição hierárquica superior, em uma posição em que podem mandar em vez de ser mandadas. Assim elas teriam a oportunidade de experimentar o papel dos adultos, que vivem no comando da vida delas. Faz sentido? Não vejo maiores benefícios para a formação de uma criança colocá-la na posição de mandar e desmandar. Se há importância nisso, é secundária. Sem dúvida a criança tem a chance de exercer outros papéis quando se relaciona com animais de estimação. Mas não necessariamente o de comando. O mais bonito e surpreendente talvez seja a possibilidade de exercer um papel de troca entre iguais, em que a obediência não faz parte, um papel no qual a criança não precisa desempenhar algo que espera dela.
Como cães e gatos têm expectativa de vida menor que a nossa, a criança que convive com eles tem a chance de assistir ao ciclo da vida: infância, crescimento, velhice e morte. Vivenciar essa experiência está entre os benefícios para o desenvolvimento infantil? Eu, particularmente, não dou destaque a isso. Considero secundário. Mas dia, menos dia, outros acontecimentos trarão para a criança o acontecimento sobre as etapas da vida.
Como lidar com o sofrimento da criança quando o animal de estimação morre, substituindo-o? Substituir perdas nunca é a melhor forma. A perda tem de ser vivida. O luto, a perda, a tristeza fazem parte da vida. Depois que a perda estiver estruturada, aí, sim, deve-se pensar em ter ou não outro bicho. A inclusão apressada de um animal dificilmente é bem sucedida. Ela deve ser pensada. A vida é dinâmica, as condições da família que sofreu a perda podem ser outras, o bicho ideal pode ser outro. Além disso, o novo animal não vem necessariamente para preencher aquela perda, ele não será igual ao anterior. Se a expectativa for essa, ele acabará sofrendo comparações, o que pode até atrapalhar a nova relação.
Em quanto tempo aproximadamente a perda de um animal é superada por uma criança? Pode levar meses, mas cada caso é um caso.
Como ajudá-la nesse processo? Para começar, falando a respeito. As pessoas podem achar que não falando do assunto ajuda a esquecê-lo. Não é verdade. A criança precisa botar para fora os sentimentos. Talvez tenha sido a primeira perda importante dela. É interessante que a falta que o animal representa seja tema de conversas, que as boas experiências de quando ele estava lá sejam lembradas. Também é válido estimular a criança a fazer algum tributo para o animal. Pode ser escrever um cartão para ele ou colocar uma foto ou desenho dele em algum lugar da casa. Ou mesmo preparar um ritual, ainda que simbólico, para o enterro ou cremação.
Um bicho para o filho único
O convívio com animais é ainda mais importante para filhos únicos? Pode-se dizer que sim. o animal trará a figura do outro para a vida dessa criança, será um ser vivo para compartilhar o dia a dia, para dividir, para ocupar espaço, para interagir. Mas não adianta os adultos da casa não quererem um animal e optarem por ele apenas em prol do filho único. Se os pais não tiverem afinidade com animais ou não tiverem condições para mantê-los, dificilmente vão criar uma relação adequada com eles.
Várias das mais importantes características da relação com animais, como a espontaneidade e a ausência de cobranças e julgamentos, não existem plenamente entre seres humanos. Ao perceber isso, um filho único que conviva com um cão ou gato não pode acabar se decepcionando com as pessoas a até se isolando delas? A relação com animal de estimação não será o único modelo de relação na vida dessa criança. Ela terá outras experiências na escola, na família.
Caso os pais não tenham condição de criar um animal de estimação na casa em que vivem, mas possam mantê-lo, por exemplo, na casa dos avós a qual a criança frequenta, os benefícios para o desenvolvimento infantil também existirão? Sim, existirão. Mas é fundamental que os avós queiram esse animal, que optem por ele não apenas por causa dos netos. Do contrário, volta a repetir, dificilmente haverá um modelo adequado de convivência.
O convívio com animais, por tudo o que falamos, é muito benéfico para as crianças. Em contrapartida, pode gerar algum malefício para elas? Só poderá haver malefício em caso de negligência da família em relação ao animal. Dessa forma, como já dito, transmite-se para a criança um modelo em que se pode negligenciar o outro.
Maltratar X não gostar
Certos traços de psicopatia podem se manifestar já na infância. Entre eles, o de maltratar animais. Por outro lado, mesmo crianças livres de qualquer distúrbio psiquiátrico muitas vezes praticam pequenas “maldades” com os bichos. Como diferenciar o comportamento do possivelmente patológico? Para que se possa suspeitar de um problema psiquiátrico desse gênero, a criança precisa demonstrar intenção continuada de dano. Um ato malvado isolado, seja por curiosidade, seja por acidente, pode ser considerado normal. Se uma criança puxa o rabo de um gato, ele grita, ela fica curiosa com aquilo e puxa novamente o rabo dele, não de deve imaginar que haja fundo patológico nisso. Eu, de qualquer forma, não acredito em indícios isolados, não acredito que maltratar animais possa ser o único traço doentio da infância de um psicopata.
É mau sinal uma criança não gostar de cães e gatos? Ser indiferente com animais é uma coisa, ser cruel com eles é outra. Simplesmente não gostar de bichos não é sinal de nenhum desvio psiquiátrico.
E ter medo deles sem razão aparente para isso? Medos injustificáveis sinalizam algum problema. Ter medo de algo que não representa perigo sempre merece avaliação.
Mas cães são, volta e meia, tratados como seres perigosos. Histórias de pessoas atacadas por eles aparecem no noticiário, no cinema. Isso pode levar uma criança a desenvolver medo deles, não pode? Em minha opinião, isso não justifica um medo que interfira na relação com cães. Se fosse assim, as crianças teriam medo de sair na rua por causa de acidentes de carro, de assalto e de outras formas de violência.
Para crianças que não têm muito interesse em interagir com o animal da casa, a simples presença dele no ambiente colabora para o desenvolvimento infantil? As relações e os benefícios gerados por elas se estabelecem não só pela interação, mas também pela observação. Numa casa onde haja um bicho mantido de forma adequada, ele frequentemente será alvo de atenção dos adultos, será assunto de conversas. A criança estará lá, assistindo a tudo isso.